Teatro

COURO DURO: A SAGA DO FIM DO MUNDO

Grupo Redimunho celebra 20 anos com um teatro inventivo, político e profundamente brasileiro

por Márcio Boaro

A pesquisa teatral é uma das marcas mais consistentes do teatro de grupo paulistano, mas poucos a levam tão a sério — e de forma tão autoral — quanto o Redimunho de Investigação Teatral. Em Couro Duro: A Saga do Fim do Mundo, o coletivo celebra vinte anos de trajetória reafirmando sua fidelidade a um caminho próprio: a construção de uma linguagem cênica singular, profundamente ligada à literatura brasileira, à história do país e à investigação das contradições entre o sertão e a cidade, o arcaico e o moderno, o mito e a memória. Trata-se de um teatro que brota do chão — do chão seco, simbólico, mítico — e que se oferece ao público como ritual de pensamento e provocação.

Cena do espetáculo Couro Duro

Foto: Jardiel Carvalho / Grupo Redimunho

O Redimunho possui uma longa e consistente pesquisa sobre o sertão, com foco notável na obra de Guimarães Rosa. Ao longo de sua trajetória, o grupo tem se dedicado a compreender o sertão não como espaço geográfico, mas como território simbólico do Brasil profundo. Em Couro Duro, Rosa é atravessado por camadas de realidade e ficção, criando uma tessitura dramatúrgica densa, onde personagens literários e figuras históricas como Lampião e Maria Bonita se encontram em cena. Há também um filme sendo rodado dentro do espetáculo, com uma equipe precária de artistas tentando realizar a obra sob o patrocínio de um mecenas invisível. A peça é, assim, uma reflexão sobre o Brasil e sobre o próprio fazer artístico — um teatro que se pensa em ato.

Cena do espetáculo Couro Duro

Foto: Jardiel Carvalho / Grupo Redimunho

O espetáculo propõe um engenhoso jogo de sobreposições: é sertão, é set de filmagem, é memória coletiva e delírio poético. Uma das figuras mais instigantes é a do palhaço-narrador, que transita entre as camadas narrativas com liberdade e estranhamento, observando tudo sem jamais ser notado pelos demais. Sua presença fantasmática atravessa a cena como uma espécie de consciência crítica — uma alegoria viva do olhar teatral sobre o país. A cenografia é minimalista, mas repleta de signos: galhos secos, lonas rasgadas, estruturas móveis e equipamentos cênicos aparentes criam um sertão despojado e ao mesmo tempo sofisticado, que revela seus próprios bastidores. Os figurinos dialogam com o imaginário do jagunço, mas evidenciam o artifício da cena, revelando costuras, bordas, rasgos, teatralidade.

Cena do espetáculo Couro Duro

Foto: Jardiel Carvalho / Grupo Redimunho

A direção de Rudifran Pompeu demonstra maturidade estética e domínio dramatúrgico. Com sensibilidade e precisão, ele conduz o espetáculo através de múltiplas camadas simbólicas, sem jamais perder o fio dramático e a comunicação com o público. Seu trabalho orquestra com delicadeza os diversos elementos da cena — texto, música, movimento, silêncio — criando uma encenação coesa e pulsante, que equilibra a densidade poética com a lucidez política.

Mas talvez uma das maiores belezas do espetáculo esteja na sua estrutura profundamente horizontal. São dezenove artistas em cena, entre atores e músicos. Não há protagonistas, mas também não há figurantes: cada pessoa tem seu momento, seu gesto, sua presença plena. Essa distribuição equânime de atenção e significado contribui para a potência coletiva do trabalho. É um teatro de grupo em sua expressão mais nobre — em que a coletividade não é apenas forma de produção, mas também conteúdo e ética.

Cena do espetáculo Couro Duro

Foto: Jardiel Carvalho / Grupo Redimunho

Com música executada ao vivo e uma equipe criativa de excelência, Couro Duro honra a trajetória do Redimunho como grupo comprometido com o pensamento crítico, a beleza cênica e a construção de uma linguagem própria. Em tempos de ataques à cultura, cortes de verbas e precarização do simbólico, o espetáculo não apenas resiste — ele propõe, reinventa, aponta caminhos. Com poesia, densidade e humor sutil, o Redimunho nos convida a reimaginar o país desde suas entranhas — e o faz com coragem, delicadeza e rigor.

Ficha técnica

Espetáculo: Couro Duro: A Saga do Fim do Mundo

Grupo: Redimunho de Investigação Teatral

Texto e Direção: Rudifran Pompeu

Elenco: Danilo Amaral, Giovanna Galdi, Keyth Pracanico, Anisio Clementino, Ricardo Saldaña, Bruna Aragão, Neide Nell, Amanda Preisig, Alberto Vizoso, Agatha Selva, Camila de Castro, Francisco Gaspar, Diogo Cintra, Heitor Vallim, Emilio Negreiro, Rodrigo Pinto

Músicos: Luis Aranha, Cíntia Gasparetto, Ricardo Saldaña, Hugo Nalbert, Agatha Selva

Assistência de Direção: Danilo Amaral

Direção Musical: Luis Aranha

Iluminação: Léo Xymox

Figurinos: Keyth Pracanico e Grupo Redimunho

Cenografia: Rudifran Pompeu e Grupo Redimunho

Artista Colaborador: Breno Carvalho

Programação Visual: Danilo Amaral

Pesquisa e Consultoria Literária: Ivan Forneron

Produção: Giovanna Galdi

Assessoria de Imprensa: Nossa Senhora da Pauta

Fotografia: Jardiel Carvalho

Realização: Grupo Redimunho de Investigação Teatral

Serviço

Temporada: 11 de maio a 1º de julho

Local: Teatro Redimunho – Rua Álvaro de Carvalho, 75 – Centro, São Paulo

Horários: Domingos às 19h | Segundas e terças às 20h

Ingressos: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia), R$ 10 (moradores do entorno)

Um comentário

  • ÁUREO MOREIRA SANTOS

    Ainda não assisti, mas com certeza trata-se de um excelente trabalho !
    Estarei presente na apresentação desta terça feira 10 de junho .

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